Capítulo 4 - Made In Brazil - Uma Dama de Ouro

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Um dia de descobertas


O noticiário

Ao abrir os olhos no dia seguinte, Érica tentou ver alguma familiaridade no cenário em volta, mas descobriu-se em mais um lugar estranho.

Desde a manhã do dia anterior, quando deixou sua mãe a caminho da roça, a vida revelava uma surpresa atrás da outra. Tudo estava acontecendo de uma só vez, mas nem tudo como esperava.

Olhou para Nelson e experimentou um amargo desconforto na alma ao ver que não estava exatamente em Milão. Era manhã de mais um dia e ainda estava no Brasil, e o que é pior, como fugitiva e cúmplice de um cara que mal conhecera pessoalmente, alguém que matava para escapar de gente perigosa.

Nelson continuava dormindo e ela ficou olhando o leve movimento de sua respiração acentuado pela coberta sobre seu torax.

De súbito ela lembrou-se da noite anterior quando chegaram ali naquela pousada. Haviam dispensado várias delas pelo caminho, até que Nelson achou que a pior de todas seria ideal. Nem mesmo documentos pessoais foram requisitados.

Ainda não haviam feito uma refeição decente e mantinha-se apenas com a barra de cereal da última tarde. Estava com fome, mas Nelson ainda dormia profundamente. Chegou a pensar se esse tipo de vida por acaso não seria rotina para ele, uma vez que parecia tranquilo em meio a tantas coisas ruins. Mas como ela mesma estava reagindo relativamente bem, até que com ele poderia estar acontecendo o mesmo.

Érica sempre via afinidade entre ela e Nelson. Não sabia precisar qual o papel exato que ele preenchia em sua vida. Talvez representasse de algum modo o irmão que ela não teve ou fosse uma versão aperfeiçoada do pai que gostaria de ter. Ela não conseguia culpá-lo por estar passando por esses problemas. Nunca achou sua vida assim tão bem resolvida, mesmo na pacata Florinópoles. Sabia que os problemas só mudavam de forma e intensidade, mas sempre estariam ali.

Nelson finalmente acordou. Tinha dormido aos pés da cama.

__Que horas são?__Perguntou ele, mais por um impulso que por necessidade.

__Sete e quinze, e eu estou com fome.__Disse Érica.

__É. Precisamos comer alguma coisa. __Ele disse isso enquanto buscava algum interfone no quarto. Não havia nada igual ali, apenas uma televisão de tubo presa por um suporte na parede. Ele ligou o aparelho e espreguiçou-se.

O velho televisor precisou de trinta segundos para estabelecer o sinal, quando passou a retransmitir o notíciário regional. As manchetes davam conta de uma noite bastante violenta na cidade. Entre os fatos que chamavam a atenção dos repórteres, descava-se um tiroteio na estrada da capital, dois corpos não identificados no subúrbio e a explosão de um galpão comercial nas proximidades.

Nelson ia deixar o quarto em busca do café da manhã, mas deteve-se ao ouvir as manchetes:

"Na zona leste da cidade, uma explosão destruiu um galpão onde funcionava uma loja de peças automotivas usadas. Tudo ocorreu por volta das vinte e três horas de ontem. Testemunhas dizem que antes da explosão foram ouvidos tiros no local. A polícia trabalha com hipótese de crime. É possível que o proprietário, um mecânico de nome Lúcio, tenha morrido no local. Cápsulas de balas foram recolhidas para perícia. Na loja, equipamentos eletrônicos ficaram carbonizados. A polícia continua investigando o caso".

__Meu Deus!__Disse Nelson.

__Esse cara não era...

__Sim, Érica. Mataram o Lúcio.__Nelson fez essa constatação com os olhos fixos em lugar nenhum, enquanto sentava-se na beira da cama.__De agora em diante, qualquer movimento tem que ser meticulosamente avaliado antes.

Sem dizer nada Érica apenas o observava. Se havia algo a fazer, esse algo necessariamente teria que partir da imaginação de Nelson. Ela estaria com ele para descobrir onde tudo isso os levaria.

__E o café?__Disse Érica.

__Verdade. O café.__Concordou ele deixando o quarto finalmente.

Abrindo o jogo

Em pouco minutos Nelson retornou ao quarto com um café da manhã razoavelmente bom, ainda mais para a fome que tinham.

__Viu alguma coisa estranha lá em baixo?__Perguntou Érica.

__Não.__Respondeu Nelson percebendo o quanto ela cada vez mais ficava parecida com ele. Arisca, esperta. Isso agradava uma parte do seu ego.

Depois do café sentiram-se bem melhor. Por um momento imperou um silêncio palpável no quarto. Foi quando ele achou oportuno abrir a pasta de couro que havia recebido de Lúcio no começo da última noite.

Com esforço, Érica procurou não demonstrar curiosidade em saber o que a pasta continha, só não deixou de perceber discretamente que alguma coisa lá dentro chamou a atenção de Nelson depois de abrí-la. Ele devia ter achado mais do que esperava, ou então, de fato não deveria ter ideia do que Lúcio lhe entregara antes de ser assassinado. Seria algo revelador certamente, pensou Érica.

Fechando a pasta com um sonoro clique, Nelson voltou-se para Érica.

__Voce pretende retornar agora a Florinópoles?

Buscando ler no semblante dele qualquer outra vontade que excedesse a simples curiosidade, Érica respondeu prontamente que não.

__Voce sabe que cedo ou tarde eu deixaria tudo para trás, fosse para Milão, pela a carreira de modelo ou por qualquer outro motivo. Aliás, voce acha mesmo que eu teria chance?

__Por que não? Tenho que te falar uma coisa: voce tem potencial para uma carreira como modelo. Vi muitas meninas como voce selecionada para as passarelas. Mas tem algo mais que eu queria te dizer.

__O que?

__Esses caras que tentaram nos matar, acho que era gente a serviço do Gusmão.

__Para matar a mim e a voce?

__Infelizmente, pode ser que sim.__Respondeu Nelson.

__Não entendo. Ele não trabalho apenas com modelos?__Érica estava tirando suas conclusões. Nelson sabia que ela poderia ter um chilique emocional.

__Extamente o que disse, ele não trabalha só com modelos.__Revelou Nelson e ficou esperando a reação dela.

__Com o que mais ele mexe?

__Assassinatos, roubos, prostituição...

__Cara, voce estava me entregando a um criminoso internacional? Não acredito, Nelson! Eu confiei minha vida a voce. Voce me enganava a cada palavra lisongeira, meu Deus...Eu, eu acreditei em tudo o que voce dizia. O que mais é mentira em tudo isso?

Esperando ser acertado por algum objeto, Nelson estava arisco ao menor dos movimentos dela, que chorava de raiva.

__Mostre aqui o seu contrato__Pediu Nelson energicamente.

Ela abriu a bolsa e retirou o documento. Nelso indicou com o dedo o trecho onde Érica viu seu nome associado a uma referência a ela como "a Dama de Ouro".

__O que isso quer dizer?

__Não sei, mas veja a data. Segundo pode ver, o pessoal do Gusmão já havia selecionado voce dois mêses antes da gente se conhecer pela internet. Não foi ao acaso que te mandei um convite no site de relacionamentos. Eles te acharam, não eu.

Érica sentia-se atropelada por uma enxurrada de informações.

Nelson continuou:__Minha missão era te convencer a viajar para Milão, e em troca, eu receberia por isso.

__Meu Deus! Quanto?

__Duzentos mil.

__Nossa!__Disse com nítido despreso.

__É sempre o valor que pagam?

__Geralmente, sim. O diferencial com relação a voce é o fato do Gusmão estar revirando o mundo para que voce chegue a Milão. Deve haver algum interesse maior, algo de que não faço a menor ideia. Outra coisa, preciso descobrir se foi ele quem mandou emboscar-me.

__Voce deveria saber pela experiência com esse tipo de gente.__Alfinetou Érica.

__Só não dá para ligar e perguntar: E aí, Gusmão. Foi voce quem mandou me matar?

Érica quase sorriu e Nelson sentiu-se bem por ela demonstrar um estado de espírito mais amistoso. Em seguida, caminhou até a porta, olhou Érica e a convidou:

__Vamos nessa?

Ela fez que sim e pôs-se de pé.

Na estrada, outra vez

Nelson agradeceu aos céus por não sofrer nenhuma emboscada na saída da pousada. Nesses últimos dias, qualquer pessoa à sua volta era vista como uma ameaça em potencial. Andava com os nervos à flor da pele. Temia a própria sombra.

__Tem ideia de para onde estamos indo?__Perguntou ele forçando uma simpatia.

__Não.__Ela respondeu secamente. Seu rosto continuava olhando para o lado oposto ao dele.

__Ele leu a mensagem que ela quis passar e segurando as palavras preferiu manter o silêncio.

__Para onde vamos?__Ela rendeu-se finalmente.

__Preciso de um lugar tranquilo para pôr um plano em prática.

Ela comemorou em segredo. Estava certa. Ele tinha novos planos.

Érica adorava ouvir os planos de Nelson. Fazer parte deles era ainda mais interessante. Já havia lhe confiado toda a vida quando topou ir para Milão, e embora não tenha dado certo, sabia que ele tinha uma imaginação incrível.

__Que lugar pretende?__Perguntou.

__Deixe comigo. Só aperte o cinto aí. Sei de um lugar que a patrulha do Gusmão não faz ideia. __Disse bem humorado.

Ela sorriu meio descrente, não sobre ele conhecer um lugar secreto, mas quanto à patrulha do Gusmão não conhecer cada palmo do Brasil.

__São muitos?__Perguntou Érica.

__O que?

__Os caras do Gusmão.

__Sei lá.__Disse ele com certo despreso.

Enquanto seguiam veloz pela estrada do litoral, Érica sentia que, fosse o que fosse, estava mais segura ao lado de Nelson. Além do mais, precisava saber tudo sobre a quadrilha do Gusmão. Saber qual o interesse dele por ela, era agora o que motivava Érica a seguir com Nelson por onde ele fosse.

O chalé da prainha

A cada curva da estrada Érica se surpreendia com a paisagem litorânea. Não sabia para onde estavam indo exatamente. Esse detalhe ficou em suspense da parte dele.

Ela só tinha ido à praia uma vez, quando ainda era adolescente . Foi através de uma excursão da escola. Na época, a turma da quarta série juntou um dinheiro e alugou o ônibus. Detalhe, o único ônibus de Florinópoles.

Lembrou-se de que seu pai se opôs ao passeio, enquanto sua mãe foi totalmente favorável. Vendo a praia Érica lembrou-se deles e desse tempo. Havia em sua infância algo que era paradoxalmente bom e ruim. Ela percebia isso só agora. Nem tudo foi somente bom ou ruim, concluiu consigo.

Saindo da estrada principal Nelson guiou o carro por um dos incontáveis acessos que se propunham ao longo da estrada com sentido às áreas para banhistas. Algumas cabanas, quiosques e chalés completavam o cenário típico para o turismo.

Nelson guiava despresando várias oportunidades de estacionar o carro, pelo que Érica pode perceber que ele sabia bem para onde estava indo. De fato, só após passar por praticamente toda a região dos banhista foi que eles finalmente chegaram a um chalé sobre uma pequena formação rochosa à beira do mar, mas bem acima de onde as ondas batiam contra as pedras. O encanto ficava por conta de um deque aos fundos, de onde um pequeno cais lançava-se para o mar. Nele, uma lancha ancorada balançava com as ondas.

Assim como a maioria dos proprietários de chalés da praia, Nelson não tinha caseiros. Não havia necessidade, uma vez que a região era inquestionavelmente bem cuidada pela administração de um condomínio. Funcionários faziam rondas frequentes, os jardins eram aparados e o local possuía até uma espécie de zoológico onde os animais viviam entre as pessoas, embora não em cativeiro. Andando pelas estradinhas de terra era possível cruzar com diversos bichos, de várias espécies, soltos em habitat natural.

Érica sentiu-se tão à vontade que até tirou do carro algumas das bolsas que havia arrumado para a viagem. O chalé era pequeno e logo Nelson apresentou a Érica todas as dependências. A área de que ela mais gostou foi o deque. Caminhou com pés descalças até o fim do pequeno cais. Sentiu uma enorme vontade de ao menos molhá-los na água salgado do mar, porém ao que parecia a maré tinha deixado o nível bem abaixo da marca mais próxima.

__Que acha?__Perguntou Nelson.

__Nossa! Que lindo!__Respondeu Érica com nítido encanto.

Ela teve vontade de perguntar se Nelson era o proprietário do chalé, mas preferiu colher essa resposta depois. Não queria que ele pensasse que esse detalhe fosse de algum modo importante para ela.

Para Érica estava claro que Nelson era o dono do imóvel. Mas isso também lembrou o modo como ele havia ganhado dinheiro. Além de agenciar garotas para a exploração sexual no estrangeiro, que outros crimes ele havia cometido para comprar aquele chalé? Perguntava ela a si mesma.

Deixando um pouco de lado essas suspeitas, ela tentou apenas sorver a brisa gostosa que vinha do oceano. Precisava de ar fresco depois de tantos fatos desagradáveis em que estivera envolvida nas últimas vinte e quatro horas. Olhando para Nelson, ela experimentou uma onda de felicidade surpreendente. Era bom estar ali sob qualquer pretexto.